A atriz Isabel Ruth, conhecida, principalmente, pela carreira que construiu no cinema, lançou na passada sexta-feira, aos 84 anos, o primeiro álbum de música.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Isabel Ruth revelou que ‘Português Suave’ é quase “um agradecimento por estar neste planeta tão bonito”, “pelo facto de estar viva”.
As primeiras letras surgiram há quatro décadas, durante uma viagem a Ibiza, Espanha. A partir daí, “fazer canções começou a ser quase uma necessidade”, uma “terapia”.
Além das letras, a antiga bailarina é também autora das melodias, que “são muito simples”, e às quais foram depois adicionados os arranjos, como que de “grinaldas” se tratassem, do músico e produtor Agir, e do pianista Manuel Oliveira.
‘Português Suave’ foi editado em vinil, em edição de autor, com apoio do Fundo Cultural da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), e está disponível desde a passada sexta-feira também nas plataformas de streaming.
“Descansada” por ter o disco cá fora, Isabel continua agora com a sua “vidinha”, cheia de atividades. Além de lançar ‘Português Suave’, a atriz de ‘Verdes Anos’ e ‘Mudar de Vida’, de Paulo Rocha, já participou, este ano, num filme. E só não participou em mais porque não gostou “dos papéis”.
Eu nasci em 1940 e nessa altura os pais levavam os filhos ao cinema ao colo
Lançar um disco aos 84 anos não é para todos e muito menos o primeiro disco. Há quantos anos sonhava com isso?
Já há muitos anos. Há muitos anos que faço canções. Eu fiz a minha primeira canção quando estive em Ibiza, em 1970. Foi aí que comecei a fazer canções, a perceber que com poucos acordes podia fazer uma canção. Para mim fazer canções é uma necessidade. Leva-me para outra dimensão, dá-me descanso, é quase uma terapia. Foi assim nessa altura que começou a nascer essa necessidade de pegar na viola e fazer canções. Geralmente, faço as duas coisas ao mesmo tempo. Toco um acorde ou dois, surge-me uma melodia e a letra vai surgindo. Às vezes sai, espontaneamente, uma canção inteira, outras vezes vai surgindo aos poucos a letra e depois termino a canção.
Apesar de ser conhecida sobretudo pela sua carreira no cinema, a música sempre fez então parte da sua vida. Que importância é que esta área teve para si no seu dia a dia?
Teve muita importância. Desde muito pequenina que sou sensível à música e um bocado também envolvida pela música do cinema. Eu nasci em 1940 e nessa altura os pais levavam os filhos ao cinema ao colo. Eu tinha uns pais muito jovens que levavam a mim e aos meus irmãos ao colo ao cinema. Portanto, comecei a ver e a ouvir cinema muito cedo [risos]. Além disso, eu sempre tive uma vocação para a dança e a dança está, obviamente, muito ligada à música. Na altura, o acompanhamento das aulas de dança era sempre piano, com Mozart e Copin. Depois fez parte também da minha adolescência, com os Beatles, os Rolling Stones, tanta música. Além de todo o repertório de música clássica que ouvia muito em casa.
Por um lado acho que é uma coisa instintiva, por outro que são circunstâncias da vida. Há quem nasça numa família onde não se ouve música e as circunstâncias muitas vezes ajudam-nos a ser aquilo que nós somos.
As minhas músicas são suaves, são em português e são num português suave
Quando a ‘Português Suave’. Este é um disco que fala muito de amor. Mas não só. Quais foram as suas principais fontes de inspiração para escrever as músicas do seu primeiro álbum?
Algumas obras de arte, como a pintura, surgem da raiva e não do amor. E algumas músicas também, como certas sinfonias de Beethoven, que são fortíssimas. E a tristeza também faz as pessoas agirem e criarem coisas. Mas acho que o impulso é sempre amoroso. Melancólico.
No disco tenho duas ou três canções inspiradas em pessoas. Por exemplo, fiz uma canção para uma senhora que via como um bocadinho triste, melancólica. Chama-se ‘Morena’. Foi feita mesmo para ela, a pensar nela. Pensava tanto nela. Ela tinha uma vida um bocadinho perturbada e eu fiz-lhe essa canção. A ‘Só Tu’ também fiz a pensar noutra pessoa. Algumas estão relacionadas com situações que me ocorrem de repente. Outras são a manifestar esse amor que eu sinto. Amor pela vida, pela existência. É quase que a agradecer pelo facto de estar viva e de estar aqui neste planeta tão bonito. É uma manifestação desse amor, que se manifesta através da música.
E de onde veio o título ‘Português Suave’?
[Risos] Por acaso tem graça isso. Eu tinha tantos títulos. Tive tantos meses a fazer o disco, que ia escrevendo títulos. Porém, não havia nenhum que me agradasse. Até que surgiu este ‘Português Suave’ porque me lembrei dos maços de tabaco, mas não é por causa deles. Eu fumei quando era nova, mas nem fumei Português Suave e nem sei se o Almada Negreiros, com quem convivi muito, fumava essa marca. Mas achei que as minhas músicas são suaves, são em português e são num português suave. E o título soa-me bem. É um slogan e além disso é bonito. Gosto mais de coisas suaves. Não sempre, porque às vezes a suavidade tem de ser pôr de lado, uma pessoa tem de ser menos suave [risos].
Além das letras, a Isabel dizia-me há pouco que também constrói as melodias. É à guitarra que o faz?
Sim, sim. Tiro os acordes. É claro que eu não sei tocar a melodia toda, mas a melodia vem de dentro, os instrumentos completam-na. Geralmente, a melodia é sempre uma coisa que vem dentro. É como se fosse uma ideia. É uma escolha e com poucos acordes pode-se fazer uma música. Aliás, os Beatles fizeram músicas famosíssimas com três acordes. Não tenho formação musical, mas sou bastante musical. Tenho melodia, sou afinada e isso já é uma grande ajuda [risos]. Portanto, esses poucos acordes [que sei dar] ajudam-me a ouvir a melodia que está dentro da cabeça. Mas é claro que preciso depois da ajuda dos músicos. Preciso de músicos que ajudem a completar e foi o que fez o Agir e o pianista Manuel Oliveira. É como decorar a melodia, como pôr uma grinalda à volta da melodia.
Uma pessoa tem de estar muito atenta todos os dias porque há bolas que nos atiram de todo o lado. O mundo todo está em conflito e se nós não estivermos em paz não conseguimos aparar essas bolas
Tinha músicas guardadas na gaveta há muito tempo à espera de um dia conhecerem a ‘luz’ de um álbum?
Estavam em cadernos [risos]. Sim, algumas eu já fiz há bastante tempo, outras são mais recentes. Há mais de 50 anos que tenho essa necessidade de pegar na viola e tocar. Nós temos de nos refugiar deste quotidiano, noutras dimensões. Não podemos só viver, comer, dormir e namorar. Há mais coisas para além disso. Eu já vivi muita coisa. Tenho 84 anos. Eu nunca tinha passado por isso. É a primeira vez que passo pelos 84 anos [risos]. Isto para dizer que há uma dimensão que para mim não há idade. Obviamente que sei que já vivi estes anos todos, mas desde que eu esteja viva e ativa não vejo nenhuma barreira para não continuar a viver. Se continuo a comer, se continuo a sair, se continuo a falar porque é que eu também não hei-de continuar a criar, a fazer cinema. Este ano, por exemplo, já participei num filme e não participei mais porque não gostei dos papéis que me propuseram. Portanto, enquanto tiver força, viva e com capacidade de criar para continuar a fazer coisas, porque eu faço tanta coisa. Gosto de representar e cantar mas, para além disso, há todo um universo a acontecer neste mundo que temos de estar conscientes. É quase como um labirinto. Uma pessoa tem de estar muito atenta todos os dias porque há bolas que nos atiram de todo o lado. O mundo todo está em conflito e se nós não estivermos em paz não conseguimos aparar essas bolas. Uma pessoa tem de estar sempre atenta, mas sem perder a capacidade de escapar desta dimensão e entrarmos num mundo de paz porque é a paz que nos traz a criatividade, não é a raiva. Uma pessoa tem de estar feliz para conseguir fazer coisas. Além disso, a música, assim como a dança, faz parte do nosso DNA. Temos música como temos água.
Ou seja, o disco agora já está fechado, já foi lançado no dia 8 de novembro, mas a Isabel continua a escrever música…
Sim. Tenho imensas músicas. Com o Agir fizemos uma escolha de 10 músicas. Mas tenho músicas mais recentes. Bastantes, aliás. Umas 30, 40, que estou a trabalhar nelas, que são muito diferentes porque são mais recentes e porque também eu fui aprendendo à medida que ia fazendo canções. A esmerar-me, a cantar melhor, a ter mais consciência do que canto. E, embora a minha voz seja fraquinha, há qualquer coisa. Dentro dos meus limites, faço o que posso. Tenho de me expressar. Como toda a gente. É o que quero e preciso.
E como foi este processo de fazer um álbum? Que desafios enfrentou neste novo desafio?
Conhecer o Agir foi algo muito importante na minha vida porque o pai dele, Paulo de Carvalho, tinha cantado uma canção minha já há muitos anos, num disco que ele fez, só com mulheres, e passados estes anos todos comecei a ouvir o Agir. Achei muito curioso a produção que ele fez com o pai, achei que foi uma atitude como filho muito bonita. Ir buscar o pai e pô-lo a cantar outro tipo de coisas foi muito bonito. Além de achar que ele canta lindamente. Por isso, pedi ao Paulo de Carvalho para me dar o contacto do Agir e depois de nos conhecermos e de fazermos a música ‘Madalena’ [assim como de alguns contratempos], surgiu esta hipótese. Depois disso foi trabalhar, ir para o estúdio, gravar. A equipa que me acompanhou e incentivou é muito amorosa e foi por causa deles que eu consegui fazer isto. Está cá fora, está feito e agora estou mais apaziguada porque já saiu. O resultado? É o que Deus quiser. Espero que algumas pessoas oiçam e que tirem as suas conclusões. Eu estou descansada, estou na minha vidinha todos os dias. Continuo a usufruir desta coisa incrível que é estar viva, ter 84 anos e ter vivido tanto. Mas quero mais. O que é que são 84 anos entre os biliões de anos de existência deste planeta? É tão pouco.
Quando era criança sonhava em ser atriz e cantora? Sonhava com o mundo do espetáculo?
Não. Nunca pensei em ser atriz. Acha uma coisa muito difícil decorar os papéis todos. Achava que não era nada para mim. Nunca brinquei aos teatros. Para mim foi sempre dança desde muito novinha. Eu tinha cinco anos quando despertei completamente para a dança. Estava em África, onde os meus pais viveram durante dois anos, e vi uma menina a dançar. Vi as sapatilhas de pontas, um espetáculo e a partir daí fiquei fascinada. E o que eu queria era isso. Dançar, ser bailarina. Na altura nem sabia o que era ser bailarina. Eu era muito musical, desde pequenina que dançava nos bailes. Valsas, tangos, cha-cha-cha. Até que fui para aulas de dança e fiz uma carreira de bailarina. Estudei em Londres, no Royal Ballet. Portanto, o espetáculo, a música, está muito ligada à minha vocação.
Leia Também: Bia Maria lança disco de estreia ‘Qualquer um pode cantar’