Assumiu a presidência da Cáritas Portuguesa há dois anos, no pico da crise económica e social provocada pela pandemia. Mas é a crise atual a que mais a preocupa. O aumento do custo de vida agravou a situação, mas Rita Valadas teme, sobretudo, os dois primeiros meses do próximo ano.
A Cáritas é uma organização oficial da Igreja Católica. O escândalo dos abusos sexuais de menores tem-se sentido, de alguma forma, no trabalho da instituição? Há menos solidariedade, mais críticas, maior desconfiança na relação com a Cáritas?
Não. Acho que as pessoas percebem que é um fenómeno que ultrapassa em muito a Igreja. O impacto também tem a ver com o facto da Igreja querer que haja abertura para se saber o que aconteceu, tentar encontrar caminhos para resolver as situações e cuidar de quem mais precisa. As pessoas percebem que não é uma situação própria da Igreja, é uma situação própria de algumas pessoas – umas da Igreja, outras não – e que nada tem a ver com o papel da Igreja na sociedade portuguesa e no Mundo. E, muito menos, no que à Cáritas diz respeito. Na crise pandémica, nunca tivemos crise de solidariedade. Os doadores correspondem de acordo com a confiança numa marca, com a confiança no trabalho que conhecem. Nestes tempos, às vezes tão difíceis, em que se percebe que alguns donativos não chegam onde deviam chegar, acho que as pessoas confiam na Cáritas e têm razão para isso.
Os bispos portugueses têm lidado bem com o problema dos abusos sexuais na Igreja?
Quem sou eu para avaliar alguém que dedica a sua vida a uma missão, que tem um conjunto de valores que todos conhecemos, e que de repente é confrontado com pecados que não podem ser resolvidos pela confissão? Ninguém está preparado. Eu confrontei-me, numa das minhas fases de trabalho, com o caso Casa Pia e lidar com aquilo tirou-me muitas, muitas, muitas noites. Acho que os bispos, antes de serem bispos, são homens. São pessoas. Este fenómeno não é da Igreja, mas a Igreja teve a coragem de o expor.
Mudando de tema. Portugal atravessou várias crises com grande impacto social nos últimos anos. Tivemos a pandemia. Agora, temos a crise inflacionária. A Conferência Episcopal desafiou o Governo a “passar de medidas paliativas para medidas estruturais”. Concorda com a ideia subjacente a este alerta de que o país anda sempre a correr atrás do prejuízo, sem revelar capacidade para resolver os problemas de fundo?
Portugal entrou na Europa em 1986, quando estava em curso o segundo plano europeu de combate à pobreza. Hoje temos uma pobreza diferente. Temos mais escolaridade, menos abandono escolar, melhores resultados. Mas é verdade que não conseguimos ainda encontrar o caminho certo e que, nestes últimos anos, vivemos de crise em crise. E esta é transversal, porque uns são afetados pelo desemprego, outros pelo aumento do custo de vida, outros pelo aumento das taxas de juro. O risco na habitação também é transversal, porque uns não conseguem pagar a renda, outros não conseguem pagar o empréstimo. O que estamos a viver tem levado a uma aposta na resposta de emergência. Ainda que haja, neste momento, uma estratégia de luta contra a pobreza, com uma pessoa designada para a coordenar, ainda não conseguimos corrigir. Eu sou contra [dar importância] ao valor das taxas de pobreza, porque, seja de 16% [a taxa mais baixa que já tivemos] ou de 22% [o valor mais alto], na proximidade, no território, não se sente grande diferença. As famílias continuam a reproduzir o fenómeno. É difícil que, quem caia numa situação de pobreza, venha a sair dela. Não somos um país rico, portanto não conseguimos agir muito ao nível do rendimento. Ainda que a pobreza não advenha só do rendimento, as iniciativas sobre o rendimento são indispensáveis. E não são as iniciativas pontuais, são as estruturais. A nossa experiência recente demonstra-nos que temos andado atrás das crises, a inventar medidas de emergência, e que, ao nível da primeira resposta, avança sempre com o primeiro passo o setor solidário. Seja a Cáritas, sejam as outras instituições. Muitas vezes a mim e a outras pessoas deste setor fazem-nos a pergunta: “Então, mas aquilo que vocês fazem não é caritativo?”. Não percebo qual é o problema. Ainda não deixámos de precisar da caridade. É muito bom dizer que há medidas estruturais, mas as pessoas, se tiverem fome, não têm força para construir outro tipo de projeto. Portanto, sim, estamos a correr atrás do prejuízo e aquilo que se vê são medidas de emergência. Quer da sociedade solidária, quer do Estado.
A taxa de inflação ultrapassou os 10%. Os apoios do Governo, seja por via do pagamento de meia pensão, ou dos 125 euros, mais a ajuda de 50 euros por cada filho, fazem a diferença na vida das pessoas?
Claro que fazem. Quando recebem, fazem. Não há ninguém, a não ser pessoas ricas, que não goste de receber em outubro. Sobretudo quando se tem filhos e começa o ano escolar. E também é uma alegria para as que não precisam tanto, mas que têm a oportunidade de poder resolver algum problema, por exemplo pagar alguma dívida. Que ninguém diga que receber 125 euros não é bom. Mas não é solução. Eu temo o que vai acontecer nos meses de janeiro e fevereiro.
Referiu-se à Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. Uma das metas é a de retirar da pobreza 660 mil pessoas. Mas, segundo os dados mais recentes, o número de pobres não só não está a diminuir como está a crescer.
Aceito a provocação, mas não vamos comparar uma estratégia com uma crise. Ter como meta tirar 660 mil pessoas da pobreza é um marco importante. Já tenho mais dúvidas quanto ao número de crianças [a meta são 170 mil]. O nosso objetivo deveria ser o de retirar todas as crianças da pobreza. Como ambição, porque sabemos que não conseguimos fazer tudo ao mesmo tempo.
O que pensa sobre a possibilidade de se criar um rendimento básico incondicional? Ou seja, sobre a criação de prestação social atribuída a cada cidadão, independentemente da sua situação financeira, de forma a garantir a todos um patamar mínimo de dignidade?
Tenho sensações mistas em relação a isso. Não tenho conhecimento suficiente para dizer qual é o caminho certo, tanto pode ser muito bom, como ser muito mau. Assistimos a isso com o rendimento mínimo garantido [atual rendimento social de inserção]. Acho que as pessoas devem ter o mínimo de dignidade para viver. Mas quanto à forma como esse mínimo de dignidade é construído, não tenho a certeza que seja através de um valor universal.
Houve também um alerta, no final da Conferência Episcopal, para o risco de colapso de instituições sociais ligadas à Igreja. Identifica-se nesta declaração?
Identifico. Já temos instituições em grande risco, temos pessoas a comprometer o seu rendimento pessoal para suportar algumas instituições. Não é estranho. Se [com o aumento do custo de vida] é difícil alimentar a nossa família, imaginem o que é quando é preciso alimentar uma família de 100 ou 200 pessoas; quando é obrigatório ter um determinado quadro de pessoal; quando o aumento do salário mínimo é definido por portaria; quando os utentes não podem aumentar a sua comparticipação. Como é que as instituições vão ter capacidade para suportar isto?
Os donativos têm diminuído?
Têm, têm. Foram uma ajuda grande na pandemia, mas neste momento estão a baixar. Muitos dos nossos doadores também estão a ser agredidos com a situação socioeconómica atual. Por exemplo, quem tem uma casa para pagar e, por causa da taxa de juro, vê os seus encargos aumentarem muito não tem a mesma disponibilidade para fazer um donativo.
Há fome em Portugal? Ou corremos o risco de chegar a essa situação-limite, tendo em conta os seus receios sobre o que possa acontecer em janeiro e fevereiro do próximo ano?
Eu diria que ainda não temos fome em Portugal. Mas poderemos ter desequilíbrios alimentares, poderemos não estar a dar os géneros alimentares necessários. Podem matar a fome, mas não serem adequados à alimentação. Não temos um fenómeno de fome, mas temos situações de fome. Também porque temos os nossos e os que vêm de fora. Tivemos situações de pressão em algumas dioceses porque chegaram grupos de migrantes e nós não deixamos de apoiar uns, para apoiar os outros. Um dia perguntaram-me se temos lista de espera. Não se pode fazer uma lista de espera de pessoas que estão com fome. “Olha, vai lá para casa e vê lá se isso passa enquanto eu tento arranjar qualquer coisa”. Não pode ser. O esforço deste setor social e caritativo é de pessoas que se fazem próximas. O meu alerta é no sentido de que, já que temos todos pouco, que apostemos naquilo que é necessário na nossa proximidade e o façamos com propósito.
Mas a alimentação continua a ser a prioridade.
Claro que sim. Mas temos pedidos para pagar rendas, para pagar a luz, para pagar a água, e é para isso que servem os donativos em dinheiro, que recebemos a partir do nosso site, num programa que é o “Vamos inverter a curva da pobreza”, através do qual fazemos a compra de géneros, mas também a compra de vouchers, que permitem às pessoas comprar bens de primeira necessidade, sejam produtos de alimentação, de limpeza, ou de qualquer outro tipo.
Falou da pressão que há em algumas dioceses para dar apoio a cidadãos estrangeiros. Está em marcha um novo acordo de imigração com os PALOP, que facilita a atribuição de vistos de entrada em Portugal para quem procura trabalho, mesmo que não haja garantias desse cidadão ter um contrato, de ter apoio familiar ou qualquer meio de subsistência. Isto é um convite a repetir o que já está a acontecer, por exemplo, a tantos timorenses?
Acho perigosíssimo. É perigoso e é publicidade enganosa, porque muitos vêm na convicção que existem condições para os receber. Se não temos maneira de alojar os que já cá estão, como é que podemos convidar pessoas a vir sem a garantia de que temos condições para os receber? Essa situação tem de ser bem avaliada. Tem de haver um canal que garanta que quem chega a Portugal não vai sofrer privações piores do que as que sofria no lugar de onde vem.
A par dos estrangeiros, a novidade deste período de crise são os estudantes e as pessoas que trabalham.
Essa situação já existia, nós é que não ligávamos tanto, porque tínhamos o tal preconceito: quem tem trabalho não é pobre. Mas quantas famílias com trabalho se veem com grandes dificuldades. Não é uma situação que resulta desta crise, mas ficam em situação de grande vulnerabilidade. A situação dos estudantes é diferente e muito preocupante. Corre-se o risco que abandonem os seus estudos e parece-me muito grave. Não podemos prescindir destes jovens interessados em progredir.
Disse que a Cáritas é muito procurada para ajudar a pagar a renda de casa. No âmbito das medidas de combate aos efeitos da inflação, o Governo impôs um travão de 2% ao aumento das rendas no próximo ano. Mas há notícias de que, para contornar essa limitação, os senhorios não estão a renovar os contratos, ou seja, muitas famílias deixam de ter casa. Sente esse problema?
Ainda não temos grandes sinais, porque os aumentos das rendas são mais pelo fim do ano. Mas sentimos o pavor das pessoas. Todas falam do medo que têm de que isso lhes aconteça, porque não vão conseguir pagar a renda. Não sei como se resolve. E também não sei se a imposição de um limite ao aumento de rendas é a solução, porque há famílias de baixos recursos que vivem da renda [da casa alugada].
Voltando aos seus receios sobre o que possa acontecer em janeiro ou fevereiro. É já ali, ao virar da esquina. Como se pode evitar o cenário que teme?
Na normal sucessão de acontecimentos, não vamos fugir a isso.
Está bastante pessimista.
Em relação ao próximo ano, estou. Só há uma coisa em que sou otimista, é em relação à nossa capacidade de encontrar soluções. Temos conseguido dar a volta e confio que vamos conseguir outra vez.
No fundo, e mais uma vez, soluções de emergência e não soluções de fundo.
Faremos o que pudermos, da melhor forma possível. Somos muito competentes na emergência. Se é isso que temos para oferecer, pois será isso que ofereceremos.
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF