“Transfake, transfake!”, berrou-se no São Luiz quando a activista Keyla Brasil saltou seminua para o palco, interrompeu a peça e acusou a companhia de dar papéis trans a pessoas alheias – seria imoral, e até violento, actor e papel terem as identidades desencontradas.
A arena deste debate está à partida enviesada por vocabulário hermético para leigos e até peritos: transfake, cisgénero, corpos, interseccional, TERF, etc. É preciso ler uma biblioteca, ou puxar muito pelo Google, para conseguirmos debater.
Mas o verdadeiro problema é que quando se fala de arte não se quer falar de arte. O teatro, a literatura e o cinema são, para quem invade palcos por causa do “transfake”, um meio para atingir um fim. A peça pode ser uma bodega, o filme deplorável, o livro uma mediocridade – tanto faz, desde que alerte consciências e lute contra a injustiça. Desde que os represente como acham que devem ser representados.
A arte pode ter isso mas não é nada disso. É um valor em si mesma, não vive apenas da virtude, transcende a identidade de quem a produz, procura o outro – e busca nas minas fundas do ser humano o ouro triste, o ouro alegre de que somos feitos. A arte engrandece-nos – mas não nos torna necessariamente melhores cidadãos.
Depreende-se que a visibilidade é o centro da questão. Não propriamente a visibilidade do drama que trans-A ou trans-B vivem, mas a visibilidade da causa, que tem por doutrina submeter a arte à representatividade. Um credo absurdo que diz que personagens gay pertencem a actores gay, trans a trans, etc. Se invertêssemos a lógica (papel hétero só pode ser de actor hétero), perceberíamos mais claramente o aberrante da coisa, e o quão longe da arte chegámos.
Os aplausos do público perante a reivindicação que lhe estragou a peça, e principalmente a cedência cobarde e hipócrita da companhia de teatro, que pediu desculpa e deu o papel a uma actriz trans, provam a força dos argumentos frágeis quando não os contestamos por medo de ferir suscetibilidades ou de sermos vistos como opressores.
O ambiente cultural caminha para o tabu, com medo da acusação – previamente cozinhada e pronta a aquecer contra quem discordar – de falta de empatia, ataque à “comunidade”, reaccionarismo. E até a acusação pronta de transfobia.
J.K. Rowling é um bom exemplo: simplesmente discordou que se sonegasse o termo “mulher” em prol de “pessoa que menstrua”. Activistas queimaram-lhe os livros, divulgaram a sua morada, as redes sociais tentaram boicotá-la.
Mas discordância e empatia podem conviver. Nunca subalternizaria uma pessoa concordando apenas por esta falar a partir da categoria de vítima. Em último caso, a discordância é prova de que vejo alguém como intrinsecamente digno, sejam quais forem as circunstâncias. Que vejo o meu semelhante como meu irmão.
Por este caminho, em breve não podemos tratar temas sem os termos vivido – sem “lugar de fala”. Teme-se que a arte venha a ser uma coisa monótona, bem-comportada e plena de bons sentimentos. Muito virtuosa mas muito fake.
o autor escreve segundo a antiga ortografia
*Escritor