D. Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa e presidente da Fundação Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023.
Poucos dias depois de notícias sobre a carta de renúncia do Papa Francisco terem reacendido dúvidas sobre a sua saúde, D. Américo Aguiar assegura que ele estará em Lisboa em 2023. Já com 300 mil inscritos e a apontar, no cenário em alta, para o “número mágico” de um milhão de participantes, a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) espera contribuir para aproximar a Igreja da geração nativa digital. A maior preocupação é a “dona inflação”, que pode fazer disparar os custos com refeições. Uma entrevista em tempo de crise, feita na condição de deixar de fora o tema dos abusos sexuais.
Este é um Natal em contexto de inflação e incerteza, depois de outra crise longa aberta pela pandemia. Que razões há para a esperança, sobretudo para quem não é católico?
É urgente sermos capazes, independentemente da nossa religião ou da nossa transcendência, de acreditar que amanhã pode ser diferente, pode ser melhor. Que como família, como equipa, podemos vencer os obstáculos. Se não tivermos essa graça de acreditar que amanhã pode ser diferente, será muito difícil, muitas vezes, sair da cama. O Papa Francisco tem dito que há uma terceira guerra mundial em curso, e na altura não foi muito bem compreendido. A única forma de quebrar esta dinâmica de guerra e de sofrimento é uma explosão de esperança. Para mim, a esperança é uma pessoa, é o menino que se fez homem e que acredito que é filho de Deus. E, ao longo dos tempos, tem feito o milagre da paz.
Tivemos recentemente notícias sobre a carta de renúncia do Papa Francisco que reacenderam a preocupação de que ele possa não ter saúde para vir a Portugal. Esta é uma ameaça real que paira sobre a Jornada Mundial da Juventude?
Não, absolutamente. O próprio Papa o diz, é alguém que tem uma limitação física, ponto. Que não é simpática, que é dolorosa e que o Papa tomou a opção – também tem direito a tomar opções – de não ser operado. O Papa não quer ser operado ao joelho. Os especialistas dizem que até não seria uma coisa muito complicada e de resolução fácil, mas ele não quer ser operado ao joelho. Não querendo, sempre que faz pressão sobre o joelho dói-lhe e fica limitado. Isso não tem impedido, como ele próprio disse, o governo da comunidade que ele é chamado a desempenhar.
Estamos a falar de uma iniciativa que exige um esforço físico evidente.
Sim, mas vamos ver uma coisa. Há visitas marcadas agora para o Sudão do Sul e outras marcadas até à Jornada Mundial da Juventude e, daquilo que é conversa com o santo padre, posso afirmar solenemente que o problema do joelho do Papa Francisco não é impeditivo de ele estar connosco na JMJ.
Em momento nenhum essa inquietação passou pelas vossas equipas ou pelas conversas com o Papa?
Tenho muitíssimas outras, essa não tenho. O Papa estará connosco, se Deus quiser.
O Papa disse esperar que estas jornadas sejam um abraço da reconciliação e da paz. Acredita que a Europa, em agosto, possa ter já encontrado a solução para estes dias negros que vivemos?
Eu quero acreditar que sim. É a tal esperança maior. Será muito triste e será muito grave para a Humanidade se chegarmos ao verão de 2023 e a guerra continuar no contexto em que está ou puder ter tido desenvolvimentos ainda mais graves. Ora, eu acredito e rezo por isso para que nós consigamos encontrar caminhos de fraternidade. Acredito que isso esteja a acontecer no terreno com protagonistas que nós não sabemos nem temos de saber. De encontrar o que une. Não sublinhar e insistir naquilo que separa, mas encontrar aquilo que possam ser caminhos que unem estas duas partes. Que possam ser caminhos de pacificação porque, infelizmente, quem sofre são sempre os mesmos. As crianças, os idosos, as famílias e os sonhos de todo aquele povo que estão suspensos.
O facto de haver uma guerra pode ter um efeito direto ou indireto na JMJ?
Efeito tem, absolutamente. Seja de participação daqueles que porventura vivem geograficamente nessa área do Mundo. Seja o contrário daquilo que significa um desejo e uma vontade de nos encontrarmos, de nos reunirmos e de nos abraçarmos, jovens de todo o Mundo para gritarmos bem alto que queremos um Mundo diferente. Aliás, o Papa diz que esta jornada pode ser, ele usou a expressão, um “separador de águas”. Um antes e um depois. Ou seja, que possamos proporcionar à juventude do Mundo inteiro um grito daquilo que são os seus sonhos, os seus projetos e as suas ânsias. Há uma nova normalidade e a nova normalidade é conhecermo-nos, acolhermo-nos, amarmo-nos e fazer os caminhos juntos.
As audiências no Vaticano têm permitido, além de dar conta da preparação da Jornada, perceber o que sente o Papa. Tem havido opiniões concretas, ajustes feitos, por exemplo, na sequência dessas audiências?
Naquilo que significa a Jornada, sim. A Jornada não é nossa. Nós temos consciência que Lisboa, que Portugal é o intermediário da Jornada do Papa. Em todos os países onde aconteceu a JMJ, aquele país, aquela Igreja foi, digamos, convidada. Foi-lhe adjudicada a organização da Jornada. Mas depois tudo o que acontece nós vamos monitorizando sempre com Roma, com aquilo que é o chamado dicastério, que antigamente se chamava congregação. E nós vamos chamar ministério que trata a questão, a tutela, a pasta da organização da Jornada Mundial da Juventude. E vamos fazendo isso semanalmente e quinzenalmente. Depois, quando estou com o Papa, vou-lhe partilhando dossiês e ideias.
Que sugestões em concreto é que o Papa tem dado?
A questão ambiental é uma questão muito querida ao Papa Francisco. Aliás, foi a primeira vez que um Papa dedicou um documento seu oficial, a “Laudato si””, sobre a problemática ambiental. Aliás, na altura muito bem acolhida por aqueles que eram os protagonistas das organizações não governamentais de ambiente pelo Mundo inteiro. E o Papa, aliás, passou a ser o Papa verde, nessa circunstância. É muito importante que os jovens sintam esta preocupação do sucessor de Pedro naquilo que é o cuidado pela casa comum. Ficamos sempre com aquela ideia que vamos queimando os prazos, vamos queimando a possibilidade de retorno ou de correção, seja as taxas do carbono, seja lá o que for. Temos a sensação de que não estamos a fazer tudo o que tem de ser feito para garantir o futuro aos jovens. Esta é uma das questões em que é muito importante ouvir os jovens, o seu sentir e as suas urgências. Outra que é muito querida ao Papa, que também cada vez mais é querida a todos nós, tem a ver com a nova economia de Francisco. Em que o Papa tem provocado encontros internacionais para se refletir sobre uma economia que corresponda àquilo que são os sofrimentos, as dificuldades da comunidade em geral, seja de Portugal, seja da Europa, seja do Mundo, neste regime económico em que vivemos. Em que às vezes temos a sensação de que a preocupação pela pessoa não é o protagonista naquilo que é esta política mundial que temos à nossa frente. O Papa tem provocado as novas gerações de economistas, as novas gerações de pensadores desta área económica, para que em conjunto encontrem os caminhos que possam oferecer à Humanidade uma economia, como ele dizia, uma economia que não mate.
Preocupa-o a gestão orçamental do evento? Sobretudo num momento de inflação elevada e em que vivemos um contexto adverso?
É lógico que me preocupa. Preocupa-me em relação à JMJ e preocupa-me em relação às famílias e às empresas, e ao país e ao Mundo em geral, porque a incerteza é a única certeza que temos. Não vale a pena estar porventura a explicar ou a lembrar o pormenor da questão da inflação, por exemplo. Naquilo que significa o trabalho da Fundação JMJ de que eu sou responsável, nestes últimos anos, anos 20, 21 e 22, tentámos ser o mais simples possíveis na gestão dos poucos meios que temos disponíveis para preparar a Jornada. E aquilo que significa a identidade da Jornada, que é muito alicerçada no voluntariado, e nós temos centenas de jovens voluntários, quer em Portugal quer no Mundo inteiro, que nos ajudam nas várias áreas onde está organizada a fundação para corresponder à organização da Jornada. Portanto, estes três anos têm sido muito geridos, peço desculpa pela expressão, com mão fechada para que seja possível corresponder àquilo que é essencial, mas no respeito por aquilo que são as dificuldades e os problemas, aliás, das famílias e dos jovens com quem nós trabalhamos e temos plena consciência disso.
Tem havido publicamente quem considere que há muito investimento público num evento católico. Como é que encara estas críticas?
Quando se colocou a possibilidade de Portugal acolher a Jornada Mundial da Juventude, o senhor cardeal-patriarca, o senhor D. Manuel Clemente, sondou aquilo que era a disponibilidade do senhor presidente da República, do senhor primeiro-ministro e na altura do senhor presidente da Câmara de Lisboa e também do senhor presidente da Assembleia da República. Do que seria a disponibilidade de Portugal para que o Patriarcado de Lisboa e a Conferência Episcopal Portuguesa pudessem apresentar Portugal como possibilidade de acolhimento da jornada. Porquê? Porque não é possível de outra maneira. Ou seja, se nós formos revisitar os locais e os países onde a JMJ aconteceu, todos os países, com mais ou menos envolvência, deram o seu ok e participaram de uma maneira muito significativa nos custos da organização. Porque não é possível de outra maneira, atendendo à dimensão daquilo que logisticamente é necessário providenciar para que tudo aconteça e para que a vinda de jovens do Mundo inteiro, católicos ou não, possa significar uma experiência significativa para esses jovens e também naquilo que significa para o país acolher estes futuros embaixadores do país de uma experiência positiva que possam ter no nosso país.
Quantas inscrições há atualmente?
Nós, neste preciso momento, já ultrapassámos as 300 mil inscrições. Mas o processo de inscrições é uma montanha-russa. Em todas as jornadas há um pico que cai agora em dezembro, depois há um pico em volta da Páscoa, e depois há um pico na reta final do verão.
Portanto, estão a contar com quantas pessoas e quantos voluntários?
O cálculo que fazemos de necessidades de voluntários fica numa janela entre os 20 e os 30 mil. Depende do número de inscritos em geral. Eu nunca tinha dito números para depois não ter nem de corrigir em alta, nem de corrigir em baixa. Estou convencido que, se o verão de 2023 tiver paz e uma economia que seja friendly, podemos ter uma jornada em Lisboa muitíssimo participada.
Esse “muitíssimo participada” tem um número aproximado?
Temos trabalhado no cenário em baixa, em média e em alta. Naquilo que é o cenário em alta, nós, organização, temos falado sempre num número redondo que pode ajudar. Que significa o número mágico de um milhão. O número mágico de um milhão da participação de jovens seria muito confortável.
Os custos estão muito dependentes também do número de inscritos?
Sim, por isso é que eu estava a dizer que não sendo nós especialistas em economia nem em orçamentos, nem essas coisas todas, estamos a pedir ajuda a quem é especialista e estamos a fechar aquilo que é o orçamento 2023 para as responsabilidades da fundação. Dou um exemplo no que está a dizer. A questão da alimentação, que é da nossa responsabilidade. Nós estávamos a falar de dezenas de milhões de euros. Dezenas de milhões de euros de alimentação. Ora, isto vai ser muito importante para o setor da restauração. Aliás, a maior parte deste dinheiro que nós estamos a falar é dinheiro muito importante para vários setores da economia, da cidade e do país. Significa contratar empresas, significa postos de trabalho, significa sempre injetar dinheiro na economia e isso é bom. Daquilo que é a responsabilidade direta da fundação temos a questão da alimentação, que é uma que me preocupa muito. Principalmente a questão logística. Nós fizemos um protocolo com a AHRESP, que nos tem ajudado muitíssimo. E o que é que vai acontecer? Aliás, aproveito para convidar os restaurantes, os cafés, os snackbars, todos aqueles que têm possibilidade de fornecer refeições a se inscreverem na plataforma para se disponibilizarem a fornecer refeições aos jovens peregrinos. Que depois, através de um QR Code, que é para ser moderno e digital, que cada peregrino vai ter, ao chegar a um restaurante, ao chegar a um café, ao chegar a um snackbar, identificam-se com esse QR Code e depois a conta, digamos assim, é da responsabilidade da fundação. Aqui é uma fatia leão daquilo que significa os compromissos da fundação. Mas depois temos os transportes e depois temos os seguros. E depois temos os kits que os jovens vão utilizar.
Tudo isso está previsto no valor de inscrição, que é pago pelos jovens, ou não cobre as despesas reais?
É assim, a nossa expectativa é de que possa cobrir. Vai depender daquela palavra que usámos há bocadinho, a senhora inflação. Portanto, nós não temos possibilidades de acerto daquilo que é a comparticipação dos jovens. E, por isso, eu dou-vos o exemplo: o jovem que se inscreva para tudo. Um parênteses: quem não se inscrever, participa em tudo na mesma se quiser. Aliás, é a tradição nas jornadas, neste milhão que eu estou a falar, não estamos a falar de um milhão de inscritos. Estamos a falar eventualmente de 300, 400 ou 500 mil inscritos. Os restantes é como nós. Um paga para entrar e os outros vão pendurados. Da parte da Jornada, seja no orçamento, seja na execução, seja em dar contas de um cêntimo que porventura de dinheiro público, nós queremos ser exemplares naquilo que é a justificação da sua utilização e as contas direitinhas à Porto, em que cada um assume as suas responsabilidades.
Falou há pouco que há a expectativa de que esta seja uma jornada separadora de águas. Que frutos concretos é que, depois de agosto, espera que esta Jornada deixe na juventude católica em Portugal?
Sou mais ousado. Eu falaria na juventude do Mundo e católica.
Mas pedia-lhe a realidade portuguesa, muito envelhecida, com diminuição da prática religiosa.
Eu tenho tido a graça de correr o país naquilo que é a determinação dos símbolos. Como sabemos hoje ou lembro, a acompanhar a Jornada, o querido Papa João Paulo II entregou à organização uma cruz de três metros e oitenta. Pesadinha. E um ícone, uma pintura, um retrato de Nossa Senhora Salus Populi Romani, de devoção na cidade de Roma e que o Papa entregou e percorre sempre as dioceses do país onde a Jornada acontece. Neste preciso momento, os símbolos estão a percorrer as diocese das Forças Armadas e vão ter o réveillon em Viana do Castelo e depois começa a descer o litoral até chegar a Lisboa. E tenho feito as dioceses todas. E tenho constatado o que está a dizer, que é verdade, ou seja, a ideia e a realidade de um tecido envelhecido. De um interior, infelizmente desertificado, mas também a alegria, vou usar uma expressão, de ver aparecer debaixo das pedras, jovens.
Sente essa aproximação? Ou, pelo contrário, sente o efeito do decréscimo da prática religiosa, até por via da pandemia?
Nós vemos um tecido jovem que não faz parte dos escuteiros, não faz parte dos acólitos, não faz parte da catequese, não faz parte do movimento nenhum. Porventura, nem está no contexto católico e que se sente cativado, que sente curiosidade pela Jornada Mundial da Juventude. Isto é uma oportunidade para a Jornada Mundial da Juventude.
E é uma oportunidade também para a Igreja. E acha que os escândalos que afetaram a vida da Igreja também têm um impacto nesse afastamento?
Com certeza. Só não sente quem não é filho de boa gente, aprendemos nós.
Tem havido falta da energia e de novidade na forma como a Igreja portuguesa tem comunicado?
Esta é a primeira Jornada Mundial da Juventude em que os peregrinos são nativos digitais. Há um autor das Ciências da Comunicação que diz que quem nasceu a partir de 1990 é nativo digital. Quem nasceu antes pode ser imigrante digital.
Mas acha que uma coisa tem a ver com a outra?
Tem tudo a ver. Nós aprendemos que a questão da evolução tecnológica vai para além das ferramentas. Sinto que os jovens falam numa linguagem que nós não entendemos. E outra que é mais fácil de entender. Nós falamos com os jovens e eles ficam a olhar para nós e não nos entendem muitas vezes. Ou seja, há efetivamente uma urgência de um upgrade, de uma atualização.
E há também a necessidade de a Igreja ser cada vez mais transparente, até perante os escândalos que a afetam.
Sim. Nós temos de ter consciência da importância de sermos transparentes, de sermos claros e de sermos verdadeiros com estes jovens. Estou convencido que os jovens não nos perdoarão a insistir no erro, a insistir na falha e insistir no pecado porventura.
Como alguém ligado ao Grupo Renascença, qual é o papel da Igreja nestes mecanismos mais tradicionais de comunicação? Continua a haver um espaço para a Igreja e um sentido para estar no negócio dos media?
O fundador da Renascença, o monsenhor Lopes da Cruz, dizia que a Renascença seria uma oferta aos ouvintes, uma oferta de uma leitura diferente da realidade. Como sabemos, infelizmente, a vida dos media é complicada. Economicamente falando, muito difícil. Eu acho que os cidadãos têm que ter consciência disso. Que uma imprensa e uma Comunicação Social livre tem custos. Tem muitos custos. E não podemos ficar a dormir descansados, delegando na totalidade os custos dessa imprensa/ media livre no mundo da publicidade e das empresas. Há uma coisa que me causa alguma dificuldade, que é os vários operadores, agentes de jornalistas e profissionais e donos, não nos entendermos quanto ao caminho certo a percorrer.
Em Portugal, houve uma confusão total induzida pelo próprio Governo na antecipação de publicidade, que passou como sendo um apoio do Estado.
Exatamente. Eu acho que esse é um exemplo de que não vai ser possível encontrar uma solução do género novamente. Como é que é possível que o financiamento dos media seja exclusivamente publicidade? Não pode ser! Não deve ser! Qual é a solução? Pois, lamento, mas eu não sei.
Temos agora 2,2 milhões de pessoas em risco de pobreza. Que respostas está a Igreja a preparar para ajudar as pessoas?
Nós temos que gritar bem alto, para ouvirmos nós próprios para que todos ouçam que, como um todo, não podemos permitir que cada vez mais homens e mulheres trabalhem honradamente, e que cheguem ao fim do mês e continuem pobres, porque o que recebem não permite corresponder aos mínimos da dignidade. Não adianta nada encontrar os bodes expiatórios. Nós temos como Humanidade, como sociedades, de dizer assim: “Isto acabou”.
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF