Pascal Elbé falou ao JN sobre “Fomos Feitos um para o Outro”, já nos cinemas
Um professor de História com problemas de audição, que não revela, preferindo viver na sua bolha. Uma vizinha com uma filha muda. “Fomos Feitos um para o Outro” é a terceira realização de Pascal Elbé, ator já muito experiente e que interpreta o protagonista. Na nossa conversa com o ator, argumentista e realizador do filme, percebemos melhor como esta história lhe é tão pessoal.
Histórias de amor são as mais levadas ao cinema. Mas o seu filme é original. Como é que evitou os lugares-comuns do género?
Na realidade, não sabia que estava a escrever uma comédia romântica, um filme de amor. Só o percebi mais tarde. A história que escrevei era uma forma de aceitar o que eu estava a viver, de aproveitar esta personagem que perde a audição para falar da relação que temos com os outros. Ao princípio não ousei falar de amor, mais aos poucos tornou-se efetivamente uma história de amor. Eu fui o primeiro a ficar surpreendido.
E de onde veio essa ideia de alguém que está a perder a audição?
Eu perdi parte da audição há alguns anos. Mudou por completo a minha vida. Mas o impulso para fazer o filme veio de um livro escrito por David Lodge, um autor inglês de que gosto muito. O livro chama-se “A Minha Vida em Surdina” e conta a vida de um professor universitário que perde a audição e utilizou muitas expressões iguais às que eu sentia. Se ele colocou essas ideias em palavras, eu podia fazê-lo através das imagens.
A sua carreira é sobretudo de ator. Já fez dois filmes, mas bastante espaçados. Desta vez, a história é mesmo muito pessoal…
Mas não queria fazer um filme militante. O que procurei foi um tema. Vi que havia um tema formidável de comédia, ver alguém que perde a audição numa época onde estamos ultra conectados, mas nunca vi tanta gente solitária. As pessoas vivem hoje numa grande solidão. Quis falar de comunicação e da nossa relação com o outro, através desta personagem que perde a audição e que vai finalmente aprender a ouvir ou outros.
Teve algumas reações de pessoas que têm este mesmo problema auditivo?
Mesmo se tenha recebido um milhar de mensagens de pessoas que me agradeceram, que dizem que graças a mim compreendem melhor o pai ou o irmão, ou que são mais compreendidos pelos outros, não quis fazer um filme para libertar a palavra destas pessoas. A melhor mensagem que recebi foi de uma mulher que me disse que ao ver o filme tinha acreditado de novo na possibilidade do amor.
Quando começou a perder a audição teve problemas semelhantes aos da personagem que criou?
Sim, bastantes. Quando começamos a perder a audição, há um trabalho diário de malabarista. É um handicap muito complicado, porque é invisível. Quando pedimos a alguém para repetir o que disseram ficam aborrecidas. Deixamos de pedir, fazemos de conta que ouvimos e é aí que as situações mais complicadas começam a surgir.
Pode dar um exemplo?
Uma vez, num avião, uma mulher com um bebé pediu-me para a ajudar com a mala e eu pensei que ela me tinha reconhecido. Sorri-lhe e sentei-me. Alguns anos mais tarde viu-me, já sabia do meu problema e disse-me que na altura pensou que eu era um parvalhão. No geral prefiro sorrir a deixar que me firam. Mas também digo logo que tenho este problema. É preferível dizê-lo, para evitar os mal-entendidos.
Sendo um filme tão pessoal, imagino que nunca pensou dar o papel a outro ator…
Sabia que ia ser eu a interpretar e que ia ser difícil estar à frente e atrás da câmara. Queria ter prazer a fazer este filme e é complicado estar em todo o lado. Mas como conheço a situação por dentro ia ser complicado explicá-la a outro ator. E fiz bem, porque me senti muito bem no filme. Houve uma espécie de milagre, as coisas passaram-se muito bem.
O elenco é todo ele uma mais valia do filme…
Precisamente, como todos os outros atores principais são muito bom, eu não podia ser o elo mais fraco, não podia ser inferior a eles. Meti na cabeça que não podia cometer nenhuma asneira. Mas é verdade que coloquei a mim próprio essa questão que levantou.
Mas já não é a primeira vez que é ator num filme que dirige…
É verdade, mas no meu segundo filme, o eu realizador despediu o eu ator e fui buscar uma outra pessoa. Mas hoje, se o papel me corresponde, é mais fácil. Gosto muito de atores, se não há um papel para mim não é grave. Não é isso que me vai impedir de contar a história que quero. O mais importante é quem conta a história.
Porque escolheu a Sandrine Kiberlain?
Gosto da maneira de estar da Sandrine. Temos a mesma idade, o que é bom para uma história de amor. É um pouco como na vida, podemos ter uma pessoa que nos vai acompanhar, porque não? Não é necessário que seja sempre aquela grande paixão. A Sandrine percebeu isso de imediato. É uma atriz imensa, mas na vida tem uma forma de pensar que é justa e é isso sobretudo que aprecio nela.
Ao nível do som, o filme é muito exigente. Pode falar um pouco sobre o conceito sonoro do filme?
A promessa deste filme era também trabalhar o som. Servir-me da gramática do cinema para restituir o que podemos sentir no interior de nós próprios. Era importante seguirmos o ponto de vista da personagem, mesmo que nem todo o tempo, porque seria cansativo. Mas tinha três ou quatro cenas para fazer as pessoas compreender o que nós sentimos, quando ouvimos mal. O cinema dá-nos essa possibilidade.
Como é que trabalhou com a equipa de som?
Expliquei aos técnicos de som o que eu sentia e fomos avançando, aos poucos. E finalmente conseguimos encontrar o ADN do filme.
Há alguma razão para ter escolhido a profissão de professor de história para a personagem?
Queria que tivesse um trabalho que falasse da transmissão. E alguém que não ouve os seus alunos. Quando um colega lhe diz que é preciso ouvi-los porque não são todos estúpidos ele vai ter de aprender a ouvir melhor. E eu adoro História. Apagar a História é condenar-nos a revivê-la. Achei importante que ele falasse aos seus alunos mesmo das coisas menos positivas da nossa História.
Sendo também realizador, quando é “apenas” ator costuma olhar para o realizador, para ver se ele está a trabalhar bem?
Tudo começa com o argumento. Se estiver bem escrito, há uma forte possibilidade que ele saiba onde colocar a câmara. Eu gosto que me peguem pela mão, sou muito dócil, o que não gosto é de realizadores que não têm ponto de vista, que colocam a câmara não importa onde, porque vão desenrascar-se na montagem. Quer dizer que não trabalhou o suficiente. A câmara deve ser posta onde conta alguma coisa. É o preço a pagar. Quando faço um filme, não durmo durante três meses.