O ativista antirracista Mamadou Ba, acusado de ter difamado o militante de extrema-direita Mário Machado, garantiu esta quarta-feira, no primeiro dia do julgamento, que, quando se pronuncia “no espaço público”, o seu “intuito é defender a democracia”, na qual se inclui a luta contra o racismo.
“Mário Machado não é alvo das minhas preocupações em particular, mas sim o que representa enquanto projeto de sociedade”, afirmou, no Tribunal Local Criminal de Lisboa, Mamadou Ba, de 49 anos e atualmente a residir no Canadá.
O caso remonta a 14 de junho de 2020, quando o então dirigente do SOS Racismo apelidou Mário Machado, numa publicação nas redes sociais, de “assassino” de Alcindo Monteiro, morto em Lisboa em junho de 1995 aos 27 anos por “cabeças-rapadas”, por ser negro.
O militante neonazi, hoje com 46 anos, estava ligado ao grupo e foi, na altura, condenado por vários crimes mas absolvido do homicídio do jovem, que não foi o único a ser agredido naquela noite com a mesma motivação.
Esta quarta-feira, Mamadou Ba lembrou que a utilização da expressão tem um contexto, constando de um texto em reação ao facto de João Martins, que cumpriu pena pelo homicídio de Alcindo Monteiro, ter organizado uma iniciativa “a lembrar os seus feitos” em Lisboa a “escassos 10 metros” do “descerramento de uma placa” em homenagem ao jovem de ascendência cabo-verdiana morto 25 anos antes.
O objetivo seria mostrar que, apesar de ser “habitual ver mais referências” a Mário Machado, não foi este o único “a estar envolvido no ambiente que causou o assassinato de Alcindo Monteiro”.
Para fundamentar a sua posição, Mamadou Ba citou, ainda, um excerto do acórdão então proferido, no qual é dito, a determinada altura, que “cada coautor é responsável pela totalidade do evento, pois sem a ação de cada um o evento não teria sobrevindo”. “Não há culpa coletiva, mas há responsabilidade coletiva”, sublinhou o arguido.
“Nem se venha dizer que foi o autor moral”
Nas suas exposições iniciais no julgamento, o mandatário de Mário Machado, José Manuel Castro, salientara, precisamente, que no ordenamento jurídico português “não há culpa coletiva” e que ficou demonstrado em tribunal que o seu cliente “não teve envolvimento” no homicídio. “Nem sequer se venha dizer que foi o autor moral”, afirmara, lembrando que esta acusação sem fundamento “é uma situação recorrente”.
Já a advogada de Mamadou Ba considerara que, atendendo ao cadastro extenso, Mário Machado “destruiu a sua reputação positiva”. “Granjeou reputação negativa pelas suas próprias mãos e, perfilhando doutrinas nazis, praticando atos criminosos, vangloriando-se disso, não tem honra, no sentido que um bom cidadão a tem”, frisara Isabel Duarte.
O julgamento continua na sexta-feira. Entre as testemunhas de defesa arroladas estão Francisca Van Dunem, ex-ministra da Justiça – que já depôs por escrito -, Ana Gomes, antiga eurodeputada socialista, Francisco Louçã, ex-líder do Bloco de Esquerda, e Rui Tavares, deputado único do Livre na Assembleia da República.
Se vier a ser condenado, Mamadou Ba incorre num pena de multa ou de prisão por difamação com publicidade e calúnia.
Mário Machado fora de sala cheia de apoiantes de Mamadou Ba
A sala de audiência onde decorreu a primeira sessão do julgamento, no Campus de Justiça de Lisboa, tem capacidade para apenas oito pessoas no público, mas, esta quarta-feira, acolheu cerca de 50 apoiantes, a par de menos de uma dezena de jornalistas, de Mamadou Ba. Num cenário raro nos tribunais portugueses, os cidadãos foram autorizados pela juíza a permanecer em pé e a sentar-se no chão durante as duas horas que durou a sessão.
A sobrelotação da sala implicou que Mário Machado aguardasse, por sua iniciativa, o fim da audiência no átrio do piso da sala de audiências. À saída, abandonou o tribunal com discrição, enquanto Mamadou Ba foi aplaudido pelos seus apoiantes. “Fascismo nunca mais” e “racismo nunca mais” foram as palavras de ordem gritadas durante cerca de um minuto, até uma participante alertar que o grupo não tinha autorização para se manifestar.