“Não saía daqui, não abandonava o bairro por nada. Eu, se me saísse o euromilhões, podia pôr a minha casa num palácio, mas continuava a viver aqui.”

 

A frase é de Manuela Augusto, nada e criada na antiga Curraleira, agora Bairro Horizonte, na zona da Penha de França, e fazia parte do vídeo exibido num televisor antigo, no pátio da moradia que acolheu o projeto “A casa invisível”, uma das doze intervenções artísticas selecionadas para o projeto “Passa cá em casa”, integrado no festival “Uma revolução assim”, que terminou no domingo.

Janice Iandritsky e Ricardo Santos propuseram uma visita guiada pelas memórias do bairro, construído ao abrigo do programa estatal de construção SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), surgido após o 25 de Abril de 1974 e que pretendia dar resposta às necessidades habitacionais das populações mais desfavorecidas.

“Já disse aos meus filhos: daqui só para o cemitério, ou para o hospital, e do hospital para o cemitério”, repete Manuela Augusto, em conversa com a Lusa, após a última sessão do projeto que propôs “repensar um modelo de intervenção sobre a construção coletiva da cidade”.

A razão para Manuela querer ficar no bairro é só uma: memória. “Aqui tenho boas e más recordações, tenho as recordações dos meus pais, tenho as recordações do meu marido, tenho o nascimento dos meus filhos…” elenca.

Garantindo que tem “mais boas do que más” recordações, Manuela não deixa de apontar o que “falta” fazer.

“Principalmente a limpeza, é só ervas, é só lixo, é ratas, assim deste tamanho [abre os dedos], parecem gatos”, descreve, criticando a recolha do lixo.

“Não limpam, […] os contentores do lixo não são lavados, a rua não é lavada, a higiene…”, relata.

Além disso, “não há uma rampa em condições” que facilite a vida a quem tem dificuldades.

“Há uma senhora que anda de canadianas, que não tem mobilidade, e todos os dias sobe aquelas escadas, coitada”, conta.

O bairro pede, mas “não fazem nada”, lamenta, referindo-se à Câmara de Lisboa, responsável pela gestão e manutenção do bairro, construído em terreno municipal.

Janice Iandritsky e Ricardo Santos quiseram “dar mais visibilidade” ao bairro, onde já haviam organizado uma visita guiada.

“Uma das coisas que mais nos disseram é ‘já passei aqui tantas vezes e nunca tinha entrado aqui'”, relata Ricardo, que vive próximo.

“O contexto da proximidade deste bairro com a cidade — ser tão próximo, as dificuldades que o bairro e os desafios que o bairro ainda enfrenta — fazia todo o sentido dar mais visibilidade a este bairro e voltar a trazer aqui pessoas que passam aqui ao lado e nunca tinham aqui entrado”, explicou à Lusa.

“As condições em que o bairro está, a falta de recolha de lixo, a falta de iluminação pública afastam mesmo aqueles que possam ter algum interesse ou curiosidade”, considera o autor de uma coleção de livros sobre os bairros SAAL a nível nacional.

“Uma casa não é quatro paredes e um teto, também é uma construção, de alguma maneira simbólica, a partir das memórias das pessoas”, destaca Janice, que organizou uma experiência semelhante em Buenos Aires, capital argentina, de onde é natural.

Com “A casa invisível” no Bairro Horizonte, os autores procuraram reunir diferentes testemunhos sobre a vivência e “os problemas” atuais do bairro.

Nascida e criada na Curraleira, há 67 anos, Manuela vai agora acertar com a autarquia as prestações a pagar para fazer sua a casa onde vive há 46 anos (originalmente de uma cooperativa de habitação, que faliu), mas certo é que, com “200 e tal euros” de reforma e “330 euros de pensão” do marido, vai ter de contar com o apoio dos quatro filhos para o fazer.

“A casa invisível” foi uma das doze intervenções artísticas sobre a habitação e o habitar selecionadas para o projeto “Passa cá em casa”, integrado no festival “Uma revolução assim – luta e ficção: a questão da habitação”, iniciativa do Goethe-Institut Portugal que se realizou entre 25 de setembro e 06 de outubro.

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