“Entregar as crianças ao mundo digital sem nenhum adulto que as acompanhe no processo de descoberta e sem limitação temporal é oferecer uma espécie de chucha tóxica”, defende Patrícia Câmara, presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, a propósito da recomendação feita pelo Governo às escolas para não permitirem o uso de telemóveis nos 1.º e 2.º ciclos, até aos 12 anos.

 

Apesar de considerar que “a necessidade de limitar o uso de telemóveis no ensino básico é inequívoca”, a psicoterapeuta admite ter algumas reservas sobre a medida. “A minha reserva prende-se principalmente com a forma como esta recomendação vai ser posta em prática. Se for feita sem reflexão conjunta e sem envolvimento dos alunos, tenho pouca esperança nos seus resultados.”

Para já, não existe nenhuma diretiva oficial. Quer isto dizer que a decisão cabe a cada estabelecimento de ensino. Porém, recorde-se que o Executivo não fechou a porta a uma eventual proibição do uso de ‘smarthphones’ em contexto escolar, em função dos resultados obtidos.

Patrícia Câmara, presidente da SPPS© Sociedade Portuguesa de Psicossomática

Este é um tema que divide opiniões. Concorda com a recomendação feita pelo Governo ou, no limite, reconhece-lhe pertinência?

Apesar da divisão de opiniões relativamente à questão da recomendação de proibição, a importância de rever a forma como são utilizados os telemóveis, especialmente os ‘smartphones’, parece ser consensual e devia sê-lo em qualquer idade, assim como é urgente repor uma atitude ética nos conteúdos que esses mesmos telemóveis põem à disposição.

Refere-se à regulamentação de conteúdos?

Sim. A ausência de responsabilidade social na regulamentação dos conteúdos implica que o nível de maturidade para aceder a um smartphone seja ainda maior do que nos poderia parecer. A necessidade de limitar o uso de telemóveis no ensino básico é inequívoca. Saber a pertinência ou veracidade das informações veiculadas, perceber o impacto dos conteúdos partilhados em chats e conhecer os benefícios e malefícios que o mundo online pode trazer são questões que podem e devem ser trabalhadas desde o primeiro ciclo, mas adaptadas a essa etapa do desenvolvimento e, para este fim, não são necessários telemóveis, mas sim computadores.

A viagem pelo mundo digital deve começar acompanhada pedagogicamente e nunca deverá ter como função máxima a ausência relacional ou o desaparecimento do momento presente, como tantas vezes vemos acontecer. Entregar as crianças ao mundo digital sem nenhum adulto que as acompanhe no processo de descoberta e sem limitação temporal é oferecer uma espécie de chucha tóxica que não só não autonomiza como causa dependência. 

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Um dos argumentos usados para esta recomendação é o de que a dependência digital põe em causa o desenvolvimento da empatia. É assim?

Os primeiros anos da vida e da vida na escola são a base de todo o desenvolvimento psicológico, social, afectivo, motor e, como é já do conhecimento geral, o desenvolvimento saudável depende da qualidade das relações estabelecidas. É na e da relação com os outros que nos vamos tornando pessoas. A invasão de ‘smartphones’ no espaço escolar não parece trazer nenhuma vantagem significativa dentro da sala de aula e fora dela. O tempo de brincar e aprender a gerir e digerir as relações com os outros e conosco mesmos fica altamente comprometido. 

Ou seja, é uma recomendação pertinente?

Sim, mas deve ser acompanhada de uma explicação ativa junto das crianças, em especial nas do segundo ciclo, para que a proibição não nos dê a nós adultos uma falsa sensação de segurança e para que não se torne uma imposição sem escuta daquilo que as próprias crianças vão sentindo o debate deve acontecer de forma clara.

 Faz parte do processo de crescimento a capacidade de estar só, mas não a de estar entregue a si mesmo agarrado a qualquer coisa que parece oferecer companhia, mas que, maior parte do tempo, só aumenta a solidão

Que vantagens encontra?

São muitas, principalmente no espaço de recreio. Os tempos ‘mortos’ podem voltar a existir, o que é mais importante do que imaginamos. Ter tempo para parar e brincar é tão fundamental como aprender a ler. Como sabemos, os algoritmos condicionam toda a informação que recebemos e normalmente conduzem-nos a um infinito que se abre infinitamente para lugar nenhum, isto é, sucedem-se vídeos, músicas e outras informações e desinformações que nos afunilam em estímulos sensoriais intensos e sempre na mesma direção, não nos dando a ver outras perspetivas. Não nos aparece o diferente e, sem o outro que é diferente, o desenvolvimento psicossocial não tem como não ficar comprometido e a empatia é o que mais sofre. 

Colocarmo-nos no lugar do outro é o expoente máximo do desenvolvimento emocional – ouso dizer, da humanidade – e a escola deve ter a função de estimular verdadeiramente esse movimento criando momentos onde a relação entre as crianças possa existir sem o intermédio do mundo digital. 

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Está confiante em relação a estas eventuais limitações dos telemóveis nas escolas ou tem reservas?

A minha reserva prende-se principalmente com a forma como esta recomendação vai ser posta em prática. Se for feita sem reflexão conjunta e sem envolvimento dos alunos, tenho pouca esperança nos seus resultados. Temo que crie também uma falsa sensação de segurança nos adultos e que o comprometimento com a utilização madura e responsável dos smartphones continue a ser esquecida.

O que é que os telemóveis estão a fazer às crianças? 

As crianças não deixaram de brincar, por exemplo, mas brincam muito menos e é notório, em algumas situações, a existência de síndrome de privação associado à ausência do acesso aos telemóveis, bem como alterações no desenvolvimento psicomotor e psicoafectivo, existindo já alterações neurológicas significativas. Faz parte do processo de crescimento a capacidade de estar só, mas não a de estar entregue a si mesmo agarrado a qualquer coisa que parece oferecer companhia, mas que, maior parte do tempo, só aumenta a solidão. 

O entusiasmo dos pais pela vida, pode ajudar a despertar os seus filhos para o mundo externo e, assim, melhor o seu mundo interno

O que é que os pais podem fazer para que os telemóveis não se tornem um problema para as crianças?

Podem ajudá-las no processo de aprendizagem da utilização dos telemóveis e, acima de tudo, brincar com elas e criar atividades de conjunto para viver melhor os tempos de aparente inatividade. Podem também repensar aquilo que consideram segurança e talvez começar a limitar a sua própria necessidade de as ver quietas, fomentando momentos de maior procura pela vivência da inquietude e curiosidade pela vida. 

Limitar o tempo de acesso ao telemóvel também é importante, mas mais importante ainda é mostrar o mundo que existe fora dele. O entusiasmo dos pais pela vida, pode ajudar a despertar os seus filhos para o mundo externo e, assim, melhor o seu mundo interno, a sua sensação de bem-estar.

Os telemóveis, em especial os ‘smartphones’, podem ser boas ferramentas para a vida e o próprio trabalho, mas urge repensar a forma como estão a ser utilizados e o lugar que estão a ocupar nas nossas vidas. Questionar a importância de suportar não estar ‘ligado’ e a possibilidade de estar ligado é, na minha perspetiva, a pedra de toque do momento que vivemos.

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