Tiago Vieira e Vera Bernardo foram os vencedores de um certame que quis mostrar de que fibra se faz a paisagem da Guarda. Forte, farta, fria, fiel e formosa.
Os novos Passadiços do Mondego foram a desculpa e a paisagem da Serra da Estrela a razão: a Associação de Trail Running de Portugal (ATRP) associou-se ao Município da Guarda e ofereceu aos finalistas da Taça de Portugal de Trail Running de 2022 o Trail dos Passadiços do Mondego, um festival de tons de outono imerso em nevoeiro e uma catrefada de degraus entre amieiros, freixos, salgueiros, ruínas de fábricas que construíram a fama têxtil da serra, vacas felizes, ovelhas animadas e praças de aldeia adornadas com o madeiro que há de fazer a alegria das festas. Tiago Vieira (Furfor Running Porject) e Vera Bernardo (ARCD Venda da Luísa) venceram a prova. Esperemos que tenham tido tempo de olhar em volta. Nós que fomos em prova aberta olhámos. E regressámos cheios de tudo.
O Vale do Mondego foi a arena escolhida, com partida dada dos cerca de mil metros de altitude da Praça Luís de Camões da Guarda, abençoada pela porta aberta da Sé Catedral ali ao lado e pelo mercado de Natal que anima a cidade mais alta de Portugal por estes dias. Dali, o caminho fez-se a abrir o nevoeiro em descida vertiginosa através de povoados e leiras, de badalos de rebanhos e de portões escancarados, de caminhos de terra e subidas íngremes até aos Trinta, a aldeia que viu nascer o cobertor do Papa, porque “Deus dá o frio conforme o cobertor” e aquela vertente da Serra da Estrela, mergulhada nas nuvens, é dada a arrepios. Apesar de serem os Trinta, ali as pernas ainda levavam apenas uns frescos 14 quilómetros. Faltavam algo mais de 20…
Dali ao mergulho na rota dos Passadiços do Mondego (que não no Mondego, estava mesmo frio) foi um tirinho rápido a desembocar no que resta do Engenho Grande, ou Fábrica de Marrocos, a marcar a altitude quase zero deste desafio. Chegou a ser triste (para nós que até paramos a meio da corrida para fotografar ou engolir uma sande presunto) deixar os caminheiros seguirem o percurso dos passadiços e empreender a fase de inferno deste trail. Com uma vantagem: é da margem oposta do Mondego que se descobre a serpente perfeita do passadiço, aqui e ali a saltar de lado por pontes suspensas e com um desnível mínimo que quase nos deixou enraivecidos. Porque pela frente erguia-se o Alto do Pateiro e o corta-fogo literalmente vertical que leva ao topo.
Maldissemos a taça, a ATRP, o Município da Guarda e a modalidade. Maldissemos a vida, o frio, o nevoeiro quase chuva, de novo a modalidade. Mas isso fomos nós, que somos da liga dos últimos. Tiago e Vera nem devem ter dado por nada. E, na verdade, passou num instante. O pequeno planalto entre blocos graníticos como que largados por ali haveria de nos reconciliar com a vida – e com o trail, porque só mesmo o trail para nos pôr ali.
Trilho do Mocho abaixo, daria para perceber a grandiosidade deste vale. O miradouro do Mocho lá longe, a barragem o Caldeirão, a escadaria (maldita, haveríamos de subi-la aos 27 quilómetros) dos passadiços e Vila Soeiro, aninhada no regaço da encosta do Cabeço do Meio, um presépio perfeito entre oliveiras e o som das águas agora inchadas do Mondego. A descida é daquelas de pôr a canalha à gargalhada, daquelas de acabar com o que restava de músculo depois do inferno.
A nossa sorte é que o Pinto’s Bar marca a curva junto à Ponte da Mizarela e tem, ó sorte divina, presunto e cerveja. Nossa sorte, claro, que a estas horas, já Tiago tinha tomado banho e Vera ia certamente a caminho dele, sorriso no rosto. Tínhamos de nos preparar para os 656 degraus positivos (mais 39 negativos) do fim dos passadiços, quase 600 metros de distância para 200 de desnível até à albufeira e à determinada decisão que, dali em diante, a corrida seria caminhada. Subimos a Maçaínhas por um trilho entre líquenes perfeitos, continuamos a subir por estradões, por estradas rurais, a olhar para o relógio a perguntar pelo fim, a regressar cidade nova adentro, até ao Castelo, até à porta aberta da Sé catedral. Tocavam as 6h40 no relógio de pulso, rigorosamente mais 3h44 do que Tiago e 3h12 do que Vera, mas os mesmos 35 quilómetros com mais de 1500 metros de desnível positivo.
Com a neblina gelada a espetar-nos no rosto o primeiro F da cidade dos cinco F – frio, percebíamos o quanto pequenos somos perante ela, a Guarda, a forte, a farta, a fiel e a formosa. E evocávamos Vergílio Ferreira, apaixonado por ela ao ponto de lhe travestir o nome nos escritos. “Mas a escalada termina: dobrada a curva em ângulo recto, subimos a rampa da rua da Fonte. E é Penalva inteira, ó cidade escura, negra de inverno e velhice. Abre-se-me esta rua espectral, com uma memória desolada de grandes ventos siderais, de olhos vagos de sombra, de frios e solidão desde o anúncio das eras.”
Nota: porque tudo isto do trail dói, saudemos os restantes classificados: Roberto Baião, do CD Espite, e Susana Rodríguez Echeverría, do Saca Trilhos Anadia, ficaram em segundo lugar, antes de Nélson Santos (Runners do Demo) e Lucinda Sousa (Olímpico Vianense).