Quando o Presidente Vladimir Putin assinou em 21 de março de 2014, numa cerimónia no Kremlin, a lei que concluía o processo de anexação, estavam legitimadas mais duas entidades administrativas russas: a Crimeia e a cidade portuária de Sebastopol, já confirmadas pelo Conselho da Federação, câmara alta do parlamento e pela Duma estatal, a câmara baixa.

Dez anos depois, em 11 de março passado, a Duma estatal russa confirmava os objetivos do Kremlin ao anunciar um projeto-lei declarando ilegal a entrega em 1954 daquela península à República Soviética da Ucrânia.

Anexada à Rússia em 2014 após um referendo também contestado pelos aliados de Kiev e pelas instâncias internacionais, a Crimeia possui uma importante carga histórica, cultural e emocional para o Kremlin, superior às suas afinidades com os ‘oblast’ (regiões) ucranianos de Donetsk, Lugansk (no Donbass), Kherson e Zaporijia, que Moscovo também anexou em setembro de 2022 após consultas similares, também não reconhecidas internacionalmente.

Em fevereiro de 1954, em plena URSS e um ano após a morte de Estaline, o então primeiro-secretário do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Khrushchov, de origem ucraniana, decidiu de forma unilateral retirar a região da Crimeia da República Federativa Socialista Soviética da Rússia e incluí-la na República Socialista Soviética da Ucrânia.

Durante seis décadas, a Crimeia e a cidade autónoma de Sebastopol, base da frota do mar Negro da Marinha russa, passaram a integrar a Ucrânia soviética, e a partir de 1991 o país independente.

No entanto, em 1997 e com Boris Ieltsin no poder, Moscovo e Kiev tinham assinado um pacto de partilha onde ficou acordado que as estratégicas bases navais de Sebastopol ficariam sob controlo da Marinha russa e da sua frota no mar Negro até 2017.

Uma parceria reforçada em 2010 através do Acordo de Kharkiv firmado pelo então Presidente ucraniano Viktor Yanukovych e o seu homólogo russo, Dmitri Medvedev, que contemplou a extensão da presença russa na decisiva base naval da Crimeia até 2042, com possibilidade de renovação do contrato, em troca do fornecimento de gás natural russo à Ucrânia.

Assim, e após a declaração de independência pelo parlamento ucraniano em agosto de 1991, a Ucrânia assegurava a Crimeia, mas a Rússia mantinha o controlo da estratégica base naval de Sebastopol e o seu acesso aos “mares quentes”.

A decisão de Nikita Khrushchov nunca foi aceite por influentes setores da elite política russa, que a consideravam ilegal. O contencioso registou um agravamento com o processo de dissolução da União Soviética em 1991 e uma aproximação de Kiev ao ocidente, em particular após a designada “Revolução de Maidan pró-europeia” de fevereiro de 2014, que derrubou o “pró-russo” Yanukovych.

A queda de Yanukovych implica uma quase imediata intervenção na disputada península por ordem de Moscovo, e a organização de um referendo onde a população de origem russa, largamente maioritária, se pronunciará pela separação da Ucrânia e posterior anexação à Rússia.

A história desta estratégica península de 27.000 quilómetros (semelhante ao território de todo o Alentejo), é turbulenta e exemplifica as constantes mudanças de fronteiras nestas cobiçadas regiões do extremo leste europeu.

A Crimeia começou a ser “russificada” a partir do século XVII. Palco de uma guerra pouco convencional e mortífera entre 1854 e 1856 – a “Guerra da Crimeia”, que opôs um império czarista em expansão a uma heterogénea coligação de franceses, ingleses, sardos e otomanos – a Crimeia soviética, também habitada pelos tártaros locais, é invadida pelos Exércitos de Hitler e Sebastopol e capitula em julho de 1942. Após a expulsão das forças alemãs, cerca de 200.000 tártaros são deportados para a Ásia central sob a acusação de “colaboracionismo” com o ocupante nazi.

A Crimeia, que possuía o estatuto de República na primeira União Soviética fundada em 1922 após a revolução bolchevique, é elevada por Estaline ao estatuto de ‘oblast’ (região) em junho de 1945.

Nove anos depois, e tendo como pretexto os 300 anos do Tratado de Pereyaslav — de 18 de janeiro de 1654 que implicou a “unificação” da Ucrânia e Rússia –, o líder soviético Khrushchov adotará a contestada medida.

No decurso da implosão da URSS, os habitantes da península são convocados em 1991 para um referendo com elevada participação no qual mais de 90% se pronunciam pelo restabelecimento de uma Crimeia independente separada da Ucrânia. Decidem ainda que deveria integrar o novo tratado da União proposto pelo último líder soviético, Mikhail Gorbatchov. Kiev recua na decisão, e anula o referendo.

Os sentimentos separatistas da península continuarão a ser contrariados por Kiev, apesar de garantir o estatuto de “República autónoma”. No poder desde 2000, o Presidente russo Vladimir Putin adota uma posição mais firme face às “veleidades” dos nacionalistas ucranianos, que passam também a defender uma crescente aproximação à União Europeia e NATO.

Após a queda do “russófilo” Yanukovych, cujo partido também dominava o parlamento de Kiev, o novo regime nacionalista e “pró-europeu” inclui entre as suas primeiras medidas a abolição do estatuto de segunda língua oficial atribuído ao russo, para além da proibição de diversos partidos políticos “pró-russos”.

Moscovo responde e, a partir de 28 de fevereiro de 2014, soldados russos infiltram-se na Crimeia sem as insígnias que os identificam. O leste russófono, na região do Donbass, revolta-se de seguida e a Rússia fornece apoio aos separatistas. Tinha início a guerra civil.

Em Simferopol, capital da disputada península, e após denunciar um “golpe de força” de Kiev, o Conselho Supremo da Crimeia opta por declarar a independência em 11 de março de 2014. A decisão é validada por um referendo em 16 de março, e de seguida Simferopol assina com Moscovo um tratado de adesão à Federação Russa. Sem correr uma gota de sangue, são progressivamente erodidos 70 anos de passado ucraniano.

Devido à ausência de continuidade territorial entre a Crimeia e a Rússia, Putin ordena a construção de uma ponte rodoviária e ferroviária de 18 quilómetros através do estrito de Kerch que separa o mar de Azov do mar Negro.

A ponte é inaugurada em 2018 e tem constituído um alvo para os ucranianos, que desde a invasão russa em larga escala do território ucraniano (24 de fevereiro de 2022) já a atacaram por duas vezes e prometeram destruí-la.

No entanto, e desde o início da invasão russa que o destino da península, poupada a combates terrestres, parecia dissociado do resto da Ucrânia.

Os aliados ocidentais de Kiev nunca reconheceram a anexação da Crimeia, mas de início consideravam oficiosamente que constituía um caso particular, parecendo inconcebível recuperar esse território pela força. E no inicio da invasão Putin exigiu inclusive, em troca de um cessar-fogo, que Kiev reconhecesse a pertença da península à Rússia.

O desejo de reconquista da Crimeia pelos ucranianos continua a motivar preocupações em certos países ocidentais, empenhados em prosseguir o apoio a Kiev, mas admitindo que não deve ser subestimado o “valor político” que a Crimeia possui para Putin, território que poderá servir de “moeda de troca” em hipotéticas negociações de paz.

Após a anexação, o ocidente adotou sanções contra a Rússia, e exige desde então que a Ucrânia recupere a integridade territorial, incluindo no Donbass e Crimeia. Insistem que a península se inclui nos territórios cuja anexação “nunca será reconhecida”, mas também admitem que poderá justificar “uma abordagem particular”.

Confrontado com a invasão russa, o Presidente dos EUA Joe Biden divulgou publicamente a posição de Washington, ao reafirmar “uma verdade elementar: a Crimeia é a Ucrânia”.

O golpe de força político de Moscovo, que permitiu ocultar variadas dificuldades militares, e os incentivos do Presidente dos EUA, Joe Biden, através de substancial apoio militar em 2022 e 2023, reforçaram a vontade dos ucranianos de retomarem a totalidade dos territórios anexados.

Os acontecimentos que se sucederam após os dois ataques em outubro de 2022 e julho de 2023 que danificaram parcialmente a ponte de Kerch confirmam a hipótese e o risco de uma escalada suplementar.

Para segunda-feira, no décimo aniversário da anexação está anunciada uma celebração na Praça Vermelha com a provável presença de Putin, e quando já estiver confirmada a sua quinta reeleição para a presidência do país.

Leia Também: Putin felicita líderes da Crimeia pelo 10.º aniversário da “reunificação”

Compartilhar
Exit mobile version